Posted on maio 25, 2020
“A China será primeira a ter a vacina”
© Claudia Paul O virologista Florian Krammer, do Hospital Mount Sinai, de Nova York. |
Florian Krammer recorda que antes da pandemia do coronavírus chegar, ele enfrentava um inimigo muito mais perigoso e complicado. Trata-se de um vírus capaz de infectar um terço da população mundial e que a cada ano muda tanto a sua composição que é preciso fazer uma vacina nova. Mesmo com essa imunização, o agente patogênico mata 650.000 pessoas por ano. É a gripe em suas duas variantes: a sazonal e a pandêmica.
Mesmo com um vírus como este, o financiamento é limitado, em parte porque os humanos têm a memória fraca e reagimos apenas a estímulos urgentes, opina Krammer, virologista da Escola de Medicina do Hospital Monte Sinai, em Nova York. A última pandemia de gripe H1N1 surgiu em 2009 e acabou sendo muito menos patogênica do que se esperava. Assim como Krammer (Áustria, 1982), boa parte dos jovens cientistas que investigaram aquele vírus não tinha nem nascido quando aconteceu a pandemia anterior, em 1968. E só houve duas outras grandes pandemias de gripe no século XX: a de 1957, que matou um milhão de pessoas, e a de 1918, que aniquilou 50 milhões.
Há meses o laboratório de Krammer se centra em estudar o novo coronavírus SARS-CoV-2. Sua equipe fez vários estudos que esclareceram as dúvidas sobre a existência da imunidade em indivíduos que se curam da doença. Uma de suas contribuições mais recentes e importantes, publicada na Cell com a equipe do Shane Crotty, especialista em vacinas do Instituto de Imunologia, da Califórnia, analisa detalhadamente a resposta imunológica de 20 pessoas que superaram a infecção. O resumo de Krammer é claro: “Não parece que haja nada de defeituoso em nossa resposta imunológica ao vírus; há muitas razões para ser otimista”.
Na sexta-feira, a equipe do Instituto de Biotecnologia de Pequim e a empresa Cansino Biologics, na China, anunciaram também os resultados da fase 1 da primeira vacina desenvolvida nesse país. Neste caso, divulgados em um artigo publicado na revista The Lancet, com todos os dados disponíveis para análise pela comunidade científica. Depois de 28 dias de testes com 108 voluntários saudáveis, os resultados parecem promissores. Além de ficar demonstrada sua segurança, os cientistas observaram que a vacina gerou anticorpos e linfócitos T nos voluntários.
Pergunta. Quem passou pela doença é imune ao vírus?
Resposta. Sobre isto temos duas classes de provas. Até agora sabíamos que há quatro tipos de coronavírus humanos que produzem catarro. Se você se infectar, desenvolve anticorpos neutralizantes. A imunidade não dura a vida toda, mas, se você se infectar de novo, os sintomas serão muito mais leves ou inclusive não os terá. Em 2003 apareceu um novo coronavírus muito mais letal que os anteriores, o da SARS [síndrome respiratória aguda grave, na sigla em inglês]. Dele sabemos que os infectados desenvolveram anticorpos e que estes duraram bastante tempo [até 13 anos].
P. E o que viram sobre o novo vírus?
R. Vemos que todos os infectados geram anticorpos. Aqui analisamos 25.000 doadores de sangue para obter plasma e usá-lo para tratar pacientes. Os dados dos primeiros 1.400 mostram que 99,5% dos infectados com PCR positivo têm anticorpos. Não acredito que essa proporção mude muito quando tivermos os 25.000 analisados. Se você sofre uma covid grave, desenvolve títulos [níveis] de anticorpos muito altos em seguida. Pessoas com infecções leves ou assintomáticas demoram um tempo a mais. Quantos mais anticorpos você gera, mais capacidade tem de neutralizar o vírus; e estamos vendo níveis de anticorpos muito altos entre os doadores, todos com doença leve. Ainda não testamos se estes anticorpos e os linfócitos T protegem do vírus, mas o razoável é pensar que sim, baseados no que sabemos de outros coronavírus. Estamos fazendo muitas análises para ver se houve reinfecções. Não vimos nenhuma por enquanto. Além disso, queremos entender que título de anticorpos uma pessoa precisa gerar para estar imunizada.
P. Há proteção além dos anticorpos?
R. Sim. Vimos em um grupo mais reduzido de pacientes que desenvolvem linfócitos T capazes de matar as células infectadas. Também desenvolvem uma boa quantidade de células T CD4 que são cruciais para produzir anticorpos. É uma resposta imunológica forte. São boas notícias tanto para as pessoas que passaram pela doença como para a vacina. É muito provável que esta mesma resposta imunológica passe quando nos vacinarmos.
P. Há gente que tem mais imunidade graças aos coronavírus do catarro?
R. O SARS-CoV-2 tem um genoma enorme em comparação a outros vírus de RNA. Graças a isso fabrica muitas proteínas. Algumas delas são epítopos conservados [fragmentos da proteína que são reconhecidos por nosso sistema imunológico]. Pode ser que os coronavírus do catarro tenham provocado a produção de linfócitos que podem ajudar a montar uma resposta imunológica mais rápida e efetiva se você se infectar com este novo coronavírus. No estudo na Cell, em torno de 60% dos casos analisados tinham células imunológicas deste tipo. Todos nós já estivemos expostos aos coronavírus do catarro, especialmente os idosos. Se você tem mais de 70 anos, provavelmente já se infectou muito mais vezes com coronavírus do que se tiver 20. É possível que estas células imunológicas ofereçam um pouco de proteção, mas não sabemos quão forte é essa resposta. Pelo que vemos nos pacientes, não parece que esse efeito seja muito grande.
P. O coronavírus bloqueia a reação inicial do sistema imunológico?
R. As células podem detectar uma invasão de um agente externo através de sinais moleculares, como, por exemplo, a presença de cadeias duplas de DNA, e iniciar uma resposta imunológica inespecífica [que destrói qualquer elemento estranho, seja qual for]. Normalmente os vírus combatem esta primeira resposta imunológica, tentam apagá-la. Sabemos que esta primeira resposta costuma ser mais forte em crianças que em adultos. Talvez em crianças e jovens funcione muito bem e eliminem o vírus, enquanto que pessoas mais idosas não consigam fazer isso porque seu sistema imunológico está mais envelhecido. É possível que o vírus se replique mais facilmente em pessoas mais velhas, que estas tenham uma carga viral muito mais alta e que isto gere uma resposta imunológica primária muito forte que seja contraproducente, que lhes faça mal.
P. O plasma de pacientes recuperados está funcionando no tratamento de doentes graves?
R. É difícil dizer. Nosso hospital decidiu que o soro seria dado a todos os doentes como tratamento compassivo [que ainda não demonstrou efetividade, mas que, em determinadas circunstâncias, é administrado segundo as provas limitadas existentes sobre sua segurança e possível eficácia]. Esta decisão foi tomada pensando em que, se funcionar, se você quiser dar a todo mundo, não se trata de um experimento científico, mas sim de algo para ajudar os pacientes. Isto significa que não temos um grupo de controle para demonstrar se os pacientes que recebem o soro têm vantagens sobre os que não recebem. É preciso esperar os ensaios clínicos em andamento que poderão determinar isso.
P. Quanto dura a imunidade contra o SARS-CoV-2?
R. Os anticorpos, de um a três anos. Mas embora eles desapareçam com o tempo, esta não é nossa única defesa. Também temos células de memória B que podem voltar a fabricar anticorpos muito rapidamente se você voltar a se infectar. Embora a imunidade gerada com a vacina não seja para toda a vida, isto não é um problema. Normalmente é preciso dar duas ou três doses de vacina até alcançar títulos altos de anticorpos. E há outras que são inoculadas mais frequentemente, como a de tétano. É possível que esta seja igual, mas não será um problema.
P. Até a chegada do coronavírus você trabalhava em uma vacina universal da gripe. Seria possível uma para os coronavírus?
R. É uma possibilidade. Os coronavírus são um grupo de vírus muito diverso, e só há dois que sejam um problema para os humanos: os alfa e os beta. Vamos aprender muito sobre a resposta imunológica ao SARS-CoV-2 e isto poderia nos mostrar o caminho para uma vacina universal. Seria em todo caso um processo longo, que exigiria muito trabalho e investimento. Agora o que precisamos é de uma vacina específica para este vírus. A gripe muda a cada ano, e a cada ano é preciso fazer uma vacina nova. Não vemos que o coronavírus mude tanto. Se você fizer uma vacina contra este coronavírus, a expectativa é que funcionará por muito tempo, como a do sarampo ou da hepatite A.
P. A vacina é a única saída desta pandemia?
R. Sim. Obter a imunidade de grupo exige tantas mortes que aspirar a ela é imoral. No princípio o Reino Unido e a Suécia agiram neste sentido. Se você olha a curva da Espanha, vê que baixou muito rapidamente porque o país agiu. O Reino Unido conseguiu achatar a curva, mas esta continua lá em cima, é um planalto. É a consequência de ter esperado uns poucos dias a mais. Haverá vacinas e estas acabarão com a pandemia. A pergunta é quando as teremos e quanto dura a imunidade que venham a gerar. Estou muito otimista.
P. É realista esperar uma vacina até o final de ano, como diz Donald Trump?
R. É realista. Mas é preciso levar em conta que não se trata só de conseguir a vacina, mas sim de poder produzir milhões de doses. Só um país como a Espanha necessitaria de 100 milhões de vacinas, pois talvez sejam necessárias duas doses por pessoa, como acontece com a maioria de vacinas que conhecemos. Quem se vacinará antes? Talvez algumas pessoas não possam ter acesso a ela antes do final de 2021.
P. Qual vacina acha que chegará antes?
R. Há diferentes candidatos. Temos dois baseados em ácidos nucléicos nos EUA, uma de DNA [Inovio] e outra de RNA [Moderna]. Na Europa há uma de RNA e outra de vetor viral. Na China há uma de vetor viral e outra inativada, pelo menos. Eu acredito que a China será a primeira a ter a vacina, e provavelmente a consiga neste outono [boreal]. É minha sensação, porque o país iniciou o processo muito rapidamente e suas agências reguladoras não são menos estritas, mas têm formas de acelerar o processo de aprovação. As agências dos EUA e Europa talvez demorem mais, mas provavelmente estarão prontas no final de ano ou começo de 2021.
P. Todas as vacinas que estão sendo testadas em humanos fora da China têm o mesmo alvo: a proteína S do coronavírus que este usa para entrar nas células humanas É um risco apostar numa só tática?
R. A proteína S é um ótimo alvo, não há nada de mal no fato de quase todas as vacinas a usarem. Há outros formatos, como uma vacina viva atenuada, que está sendo desenvolvida, mas talvez demore mais. Isto seria um problema se entre todos os candidatos atuais se obtiver uma só vacina, porque nenhuma empresa tem a capacidade de produzir 16 bilhões de doses, que é a demanda global. Por isso é muito positivo que haja oito candidatos que já estejam sendo testados em humanos e outros 120 em desenvolvimento. Muitos destes últimos alcançarão também as fases de provas em humanos em alguns meses, com o que temos muitas opções para poder fazer vacinas locais ou pelo menos regionais. Poderíamos ter 10 vacinas diferentes que funcionam razoavelmente bem. Estamos em uma boa situação.
P. Poderíamos ter estado mais bem preparados para esta pandemia?
R. Sempre haverá vírus ignorados. Antes da recente epidemia de zika, ninguém se importava com este vírus. Há vírus relacionados com esse, como o spondweni e o usutu, que têm potencial de causar uma pandemia e que deveriam receber mais atenção e dinheiro. É possível que a partir de agora sejamos mais conscientes de que há um perigo real de que um vírus animal salte para humanos e gere um problema tão grave como o atual. Quem sabe despertemos para a realidade de uma vez.
P. Como poderíamos estar mais bem preparados para a próxima pandemia?
R. O razoável seria ter uma estratégia baseada em vigiar os vírus presentes em animais e, se você encontrar algo potencialmente perigoso, caracterizá-lo e fazer um candidato a vacina que pudesse desenvolver de forma muito rápida em caso de pandemia. Sempre há um problema de financiamento, mas este vírus ocasionou perdas tão brutais que investir uns poucos bilhões de euros não é tão grave.
Fonte: El País